Umberto Eco, o Fascismo e o Governo do Brasil de 2019
Buscarei, nesse pequeno artigo, apresentar as quatorze características listadas por Umberto Eco como constituintes do ele chamou de Ur-fascismo ou fascismo eterno e, com isso, provar que o governo que se iniciou em 2019 preenche todas essas características, podendo ser chamado, segundo a definição de Eco, de fascista.
A primeira característica apresentada pelo autor italiano é o culto da tradição. Assim como ocorre com pensadores como Julius Evola, citado por Eco e considerado a maior fonte teórica da direita italiana da época, há uma espécie de sincretismo entre o pensamento político da extrema-direita brasileira e pensadores clássicos, citados e comentados pelo guru da família que está no poder. Também vemos uma espécie absurda de sincretismo entre protestantismo e catolicismo num presidente que se declara católico e, ao mesmo tempo, é batizado por um pastor protestante. A tradição também está presente no conservadorismo dos costumes que, aparentemente, está presente apenas no discurso, mas que persuadiu uma grande parte do eleitorado.
A segunda característica é implicada pela primeira, a recusa da modernidade. Essa recusa tem como principal traço a rejeição do espírito do iluminismo, da razão e, por isso, um louvor a irracionalidade. Muitas vezes, é necessário afirmar, havia uma defesa da tecnologia como sinônimo de progresso, apesar de toda irracionalidade do sistema. O governo atual desqualifica a razão ao tentar destruir as ciências humanas e a filosofia, voltando a pesquisa somente para áreas técnicas, o que o qualifica também nesse quesito como fascista.
Terceira, sustentando o irracionalismo está o culto da ação pela ação, pois a ação é bela em si. Para retratar esse ódio ao pensar e a cultura, Umberto Eco cita uma frase que é atribuída a Goebbels: “Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola”. Aqui, nem vale a pena continuar, pois a semelhança per se notae.
No quarto traço do fascismo, o autor volta a falar em sincretismo e, principalmente, da não aceitação das críticas e desacordos, sendo que toda crítica é uma traição. Evidentemente, o governo em questão não aceita críticas e todos que as fazem são chamadas de comunistas, numa verdadeira depreciação do termo. Também utilizam outros termos que consideram pejorativos e um bombardeio pesado nas redes sociais. Também muitos jornalistas, mesmo de direita, são perseguidos por criticar o governo.
O Ur-fascismo, diz a quinta característica, não aceita a diversidade, a diferença e o desacordo, busca por uma unidade, um consenso, marcado também pelo racismo. O racismo é patente no discurso, nas propagandas e proibições de propagandas presentes nesse governo. Não há como não citar as inúmeras entrevistas em que o racismo aparece e o apelo, de seu líder, para o nós contra eles.
Sexta, o Ur-fascismo vem das frustrações sociais e individuais, conforme constatada na classe média diante de algum grande problema, como uma crise econômica. O discurso do governo é voltada, principalmente, para essa classe, além de aproveitar as frustrações de boa parte da população em relação aos governos anteriores. A frustração também está presente no chefe do governo que, muitas vezes, age movido por frustrações de sua própria vida pessoal, como o caso de tentar transformar Angra dos Reis em um balneário porque foi multado praticando pesca ou caça ilegal.
Sétima: o fascismo é nacionalista e, em virtude disso, busca explicações em complôs internacionais. Percebe-se a xenofobia crescente em relação aos imigrantes e a constante citação à Cuba, Venezuela, China e outros países que estão sempre, na visão desse governo, tentando se aproveitar e praticando planos mirabolantes para prejudicar o país. Além disso, a valorização da bandeira e das cores verde e amarelo, fazendo apelo a um nacionalismo demasiado forte no discurso, mas entreguista nas ações.
Oitava característica: “Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo.” Os adeptos do governo estão sempre com medo da “ameaça vermelha”. Os partidos de esquerda, segundo a narrativa da extrema-direita” se enriqueceram através da corrupção e todos os males que os brasileiros sofrem advêm da corrupção da esquerda. Nesse quadro pintado para esses adeptos, a esquerda é vista como o grande inimigo, capaz de destruir tudo que é verde e amarelo.
Nona: Não há luta pela vida, mas vida para a luta. Sendo assim, o pacifismo é sempre entendido como um conluio com aqueles que considerarmos inimigos e, inimigos, deverão ser eliminados, sem piedade e buscando sua total aniquilação. Não há um dia que alguém do governo ou da “família que se pensa real” não ataque a esquerda e estimule a violência contra quem tem uma posição contrária a deles. O próprio chefe de governo já demonstrou, através de gestos e palavras, a intenção de metralhar os partidários da esquerda, no intuito de livrar o Brasil dessa “praga” e levá-lo a uma idade de ouro.
Décima característica. O elitismo é um aspecto dominante de todo pensamento reacionário. Um chefe de governo que afirma que quem gosta de pobre é o PT, já afirma que ele mesmo não gosta de pobre. Coloca sua família como uma “família real”, em que todos tem voz e poder dentro da Presidência. Procura destacar sempre uma elite militar que está a seu lado e exalta o modelo do militarismo. A elite econômica também é sempre privilegiada, já que o governo, já foi dito, não gosta de pobre.
Décima primeira. A educação é voltada para a construção do herói. Essa educação é, de certa forma, uma educação para a morte: o sacrifício do herói ou, como ocorre quase sempre, a morte de outros. O discurso do governo defende a militarização das escolas e, conforme já aconteceu no Rio de Janeiro, os soldados matam, num “ato de heroísmo”, pessoas comuns que só estão vivendo suas vidas. Morrer pela pátria, por Deus; tudo para deter o poderoso inimigo.
Décima segunda característica. Como a guerra e o heroísmo não são coisas comuns, há uma transferência disso para o campo do sexo e da sexualidade. Sua vontade de potência (expressão nietzschiana) é desviada para o campo do sexo, daí, como vemos nos discursos dos partidários desse governo, o machismo é exacerbado e há uma perseguição às práticas não ortodoxas de sexualidade. A homofobia impera e qualquer um que não a critique, mesmo o Supremo Tribunal Federal, é tomado como inimigo.
Décima Terceira. O Ur-Fascismo é baseado num “populismo qualitativo”. Os cidadãos não são vistos em sua individualidade, são tomados como um bloco monolítico, o povo. O chefe do Executivo considera-se, no Brasil, como um intérprete do povo, e esse povo é representado por seus partidários, já que aqueles que estão contra ele, independente de posição política (comunista, socialista, liberal etc) são traidores.
´´Ultima característica. A “nova língua” é aquela falada pelo Ur-Fascismo. A expressão é uma referência a Orwell em 1984. Umberto Eco afirma que essa “nova língua” está presente em praticamente todos os textos nazistas e fascistas e tem, como marca, a utilização de um léxico pobre e uma sintaxe elementar. O objetivo disso é evitar o raciocínio crítico e complexo. Com já foi demonstrado pela perseguição do atual governos à filosofia e as ciências humanas, o raciocínio, e não só o crítico, é atacado permanentemente, inclusive com a utilização de palavras de baixo calão. Os discursos do governo são sempre simplificados e sua forma de comunicação preferida é o conjunto formado pelas redes sociais e canais de televisão voltados para a população com uma escolaridade baixa.
O próprio Umberto Eco afirma que seria suficiente ter apenas algumas dessas características para classificar um governo como fascista, mas, como foi argumentado neste texto, todas as características estão presentes no governo brasileiro que começou em 2019.
Alexandre L Silva