Um Novo Tribunal Russell
O conhecimento da História é uma condição para todo aquele que pretende traçar estratégias para lutar pela democracia, justiça e direitos humanos. Em 15 de novembro de 1966, em Londres, o Tribunal Russell, também conhecido como Tribunal Russell-Sarte, Tribunal de Estocolmo ou Tribunal Internacional para os Crimes de Guerra, foi criado pelo filósofo, matemático, educador e escritor galês Bertand Russell e organizado, também, pelo filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre para julgar os crimes de guerra cometidos pelos EUA no Vietnã. Esse tribunal foi formado por 25 notáveis, representantes de 18 países que ouviram diversos depoimentos e testemunhos sobre a ação estadunidense no Vietnã. Infelizmente, o Tribunal Russel não tinha legitimidade jurídica para aplicar qualquer sanção, entretanto, o objetivo era demonstrar através de investigações, testemunhos, descrições e depoimentos, a violação de tratados internacionais e de valores fundamentais, fazendo um apelo à consciência moral da humanidade. O Tribunal Russell, portanto, representou uma derrota moral para os EUA e ajudaram a conscientização da opinião pública em todo o mundo sobre os terríveis crimes de guerra cometidos no país asiático.
O que nem tanta gente sabe é que existiu uma segunda edição desse tribunal, conhecida como Tribunal Russell II. Essa segunda edição foi presidida por Leslio Basso, membro do primeiro tribunal, senador italiano do Partido Socialista e professor da Universidade de Roma. O objetivo desse segundo tribunal, que também não tinha legitimidade legal, mas apenas moral, era julgar as violações dos direitos humanos e a repressão de governos das ditaduras da América Latina, sendo que, de início, visava apenas contemplar o Brasil, mas seu campo foi ampliado após o golpe chileno. Em 6 de novembro de 1973, em Bruxelas, decidiu-se adotar o nome de “Tribunal Russell II pela Repressão no Brasil, no Chile e América Latina” . Perceba-se que, ao ser tomada tal decisão, a ditadura brasileira foi reconhecida como modelo que ditava a tendência para toda a América Latina. Essas previsões foram confirmadas, posteriormente, pela própria História e por fatos nela como a Operação Condor, também chamada , no Brasil, de Operação Carcará. Essa operação tinha entre seus membros Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Uruguai, Paraguai e a CIA (EUA). Criada por um pedido da ditadura chilena, tinha como objetivo a repressão coordenada de todos os opositores aos regimes ditatoriais, assim como a eliminação de líderes da esquerda desses países e, especialmente, no Cone Sul.
A América Latina deu, nos últimos anos uma guinada à direita. Os partidos de esquerda, que governaram durante uma boa parte do período democrático, perderam a força graças à crise econômica das commodities, uma campanha contrária das mídias tradicionais, acusações de corrupção com o uso de lawfare, uso ilegal de mídias sociais por parte de políticos opositores e interferências internacionais, entre outros motivos, e acabaram por perder as eleições em boa parte da América Latina. Países como Argentina, Peru, Colômbia, Chile e Paraguai têm governos de direita alinhados com os EUA. O Brasil, por sua vez, ameaça à democracia no continente. Em 2018, a eleição presidencial brasileira teve como vitorioso Jair Bolsonaro, candidato de um partido até então sem expressão, mas que acabou se tornando um foco de extremistas de direita, em função do posicionamento de seu candidato. Assim, o Brasil acabou, através de uma eleição cujo o candidato que tinha a maior intenção de votos foi preso e proibido de concorrer (lawfare), por eleger um candidato de extrema-direita, defensor da tortura, do regime ditatorial de 1964 (1964–1985) e crítico severo dos direitos humanos, além de não demonstrar respeito algum em relação às instituições democráticas.
Agora, o governo Bolsonaro avança e os crimes de responsabilidade se acumulam, mas nenhuma ação jurídica ou política efetiva é vista. O desrespeito à verdade, às instituições democráticas, à justiça e aos direitos humanos são incontáveis em um pouco mais de meio ano. Muitos, portanto, são os exemplos, mas tomaremos dois como paradigmas disso.
Primeiro, a questão do desmatamento. Bolsonaro, assim como seu ministro do Meio Ambiente, negaram os dados fornecidos pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), órgão do próprio governo, sobre o desmatamento da Amazônia, acusando o diretor do órgão de divulgar dados que não são verdadeiros em função de interesses políticos. Esses dados são técnicos e obtidos cientificamente, através de satélites e cientistas da área. Bolsonaro e seu ministro simplesmente negaram, sem apresentar nenhum outro dado ou informação científica. Interessante também é notar que boa parte da área devastada é indígena, revelando, assim, não só um ataque à ecologia e sustentabilidade, mas também um desrespeito aos direitos dos povos da floresta.
Segundo, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada em 1995, pelo governo de centro-direita de Fernando Henrique Cardoso, teve seus membros trocados, sem respeito aos ritos democráticos, por membros do partido de Bolsonaro e por militares. Tudo indica que essa troca teve como pano de fundo as declarações de Bolsonaro sobre a morte, durante o regime da ditadura militar (1964–1985), do pai do presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Sobre tal morte, o chefe do Poder Executivo brasileiro afirmou que sabia como ocorreu, em um primeiro momento e, em um segundo, creditou à organização de esquerda a qual o pai do presidente da OAB pertencia. O mais interessante é que Bolsonaro fez tais declarações em contradição com toda documentação oficial e, portanto, mentindo segundo toda documentação e afrontando os direitos humanos mais elementares.
Como já foi visto até aqui, O Brasil tem um governo de extrema-direita que desrespeita, muitas vezes, os direitos humanos e garantias fundamentais. Dessa forma, surge, aqui, a proposta da criação de um tribunal internacional, mutatis mutandis, aos moldes do Tribunal Russell, para julgar as violações dos direitos humanos, garantias fundamentais e dos valores democráticos. Para ser eficiente, deverá contar com a presença de notórias figuras de todo o mundo e que haja, de tal modo, a desmascarar, para o mundo, as verdadeiras intenções desse governo e o perigo do estabelecimento, a partir de um paradigma brasileiro, de um novo modelo de ditadura para grande parte do mundo. Ainda há tempo para revertermos todo o mal, além do que a proposta pode ser ampliada com o acréscimo de outros países que caminham pelo mesmo caminho do Brasil. Precisamos “cortar o mal pela raiz.
Alexandre L Silva