O inquérito das Fake News e a inexistência da liberdade absoluta

Alexandre L Silva
2 min readMay 28, 2020

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Qual a fundamentação da defesa que o governo Bolsonaro faz da chamada milícia digital e do Gabinete do Ódio? Uma só: a liberdade de expressão. A Constituição Federal, no artigo quinto, inciso IX, afirma: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (1). Entretanto, tal afirmação não pode ser encarada como liberdade absoluta, o que seria um absurdo. A liberdade de expressão tem seus limites, como demonstrar-se-á aqui, e não pode ser usada, de nenhuma forma, para acobertar qualquer prática criminosa. A própria Constituição, no inciso seguinte ao citado (Art. 5, inciso X), já nos fornece alguns limites desse tipo de liberdade: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas …” (2). A conclusão é obvia, ninguém pode usar a sua liberdade de expressão para violar direitos de outros indivíduos.

Outra consequência da interpretação absurda, ou melhor, alteração absurda do direito de liberdade de expressão é ter que rasgar várias seções do Código Penal Brasileiro, uma vez que deixaria de ter qualquer sentido todas as partes desse código que tratam dos crimes contra honra (3). Calúnia, difamação, injúria perderiam o sentido, caso a liberdade de expressão fosse absoluta, uma vez que se poderia caluniar alguém, “imputando-lhe falsamente fato definido como crime” e não sofrer nenhuma punição por isso.

Bolsonaro e seus ministros negam o óbvio e insistem, talvez por incompetência, talvez por tática, em uma fundamentação inexistente da defesa daqueles que os apoiam. John Langshaw Austin, filósofo britânico do século XX, já afirmava que podemos fazer coisas com palavras, ou seja, quando dizemos algo, dependendo do que seja, também estamos fazendo algo (4). Assim, quando alguma pessoa declara que vai fazer isso ou aquilo com um ministro do STF, ela não está dentro dos limites da sua liberdade de expressão, mas fazendo uma ameaça.

Kant, um dos maiores pilares da filosofia e, também, das ciências jurídicas, já afirmava que “qualquer ação é justa se for capaz de coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal” (5), é o princípio universal do direito. Defender, então, que a liberdade de expressão pode ferir a liberdade de outrem é defender o fim do direito e, por consequência, de qualquer estado democrático. É isso, então, que podemos esperar de Bolsonaro.

Sinto um cheiro muito forte de autogolpe, mas isso é matéria para um outro texto.

Alexandre L Silva

NOTAS

(1) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

(2) Ibid.

(3) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm Em especial o capítulo V (artigos 138,139 e 140 desse código).

(4) AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Trad. Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

(5) Kant, Immanuel. A metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2003.

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Alexandre L Silva
Alexandre L Silva

Written by Alexandre L Silva

Ex-professor de diversas universidades públicas e particulares. Lecionou na UFF e na UERJ. Articulista de opartisano.org e escritor da New Order no Medium.

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