O atentado na Basílica de Notre-Dame em Nice e o Charlie Hebdo: liberdade de expressão e tolerância religiosa
Preâmbulo
Este artigo é sobre um tema muito delicado, talvez o mais delicado sobre o qual escrevi nesta plataforma. Ao mesmo tempo, é um tema que remete a uma série de outros: relativismo cultural, liberdade de expressão, discurso de ódio, limites do humor, laicidade do Estado, respeito à religião, tolerância religiosa, terrorismo, entre tantos outros. Por isso, é fundamental escrever a respeito, mesmo que isso venha a contrariar muitos que, na maioria das vezes, concordam com o que escrevo.
Descrição do atentado e sua relação com outros atentados
Nesta quinta, 29/10/2020, Brahim Aouissaoui, um jovem tunisiano de 21 anos, atacou a facadas várias pessoas e matou três delas na Basílica de Notre-Dame de Nice, na França. As vítimas que não resistiram ao ataque e vieram a falecer são: o sacristão da basílica, de 55 anos, uma mulher de 60 anos, e uma brasileira de 44 anos (a baiana Simone Barreto Silva). O autor do atentado é um imigrante, que chegou à Europa em setembro através da Lampedusa, sul da Itália e, daí, foi para a França, em outubro. Aouissaoui professa o islamismo e gritou, depois de baleado e preso, por várias vezes, “Allahu Akbar” (Deus é grande).
Além do atentado em Nice, houve outro atentado na Arábia Saudita, contra o consulado francês em Jidá, e um homem que ameaçava passantes com uma arma , em Avignon, sul da França, foi morto pela polícia; tudo isso nesta quinta-feira. Com isso, o Vigipirate, dispositivo francês para deter atentados, foi colocado em alerta máximo (1).
O crime ocorrido nesta quinta fez os franceses recordarem de outro atentado, também em Nice, em 14 de julho de 2016. Nele, 86 pessoas morreram e 458 ficaram feridas, quando um caminhão, dirigido por Mohamed Lahouaiej Bouhlel, um homem que também tinha nacionalidade tunisiana, foi direcionado contra a multidão na Promenade des Anglais.
O início dessa série de atentados ocorreu em 16/10/2020, quando o professor de história Samuel Paty foi decapitado por mostrar caricaturas do profeta Muhammad (Maomé), publicadas pelo Charlie Hebdo, a seus alunos. Segundo o islamismo, o profeta não pode ser representado, o que torna qualquer representação pictórica sua proibida. Vale lembrar que o próprio jornal Charlie Hebdo sofreu um atentado em razão de suas caricaturas do profeta, em 7 de janeiro de 2015. Nele, doze pessoas foram mortas e cinco foram feridas gravemente.
O Charlie Hebdo
Hebdo, em francês, significa “semanal” e Charlie faz referência a Charlie Brown (Peanuts de Charles M. Schulz) e Charles de Gaulle, general e ex-presidente da França. O jornal nasce do fim da revista Hara-Kiri, que tinha como principais caricaturistas François Cavanna e Georget Bernier, o “Professor Choron”. O número 94 da Hara-Kiri, de 16 de novembro de 1970, foi censurado por trazer uma manchete sarcástica sobre a morte de Charles de Gaulle. A Square Publishing publicava, à época, uma revista chamada Charlie, que publicava os quadrinhos de Charlie Brown, e resolveu ressuciitar a Hara-Kiri, desta vez com o nome de Charlie Hebdo, fazendo uma dupla referência com o nome Charlie (2).
Charlie Hebdo é um jornal satírico, de humor infame e de gosto duvidoso. Nele, nada é poupado e há caricaturas grotescas de políticos franceses, líderes mundiais, figuras religiosas, para só citar algumas. Uma das caricaturas que mais chocou foi o deboche que, apesar de crítico, foi ofensivo ao cristianismo, ao islamismo e, também, ao sentimento humanitário presente em cada um de nós. Nela, a figura de Jesus aparece sorrindo, enquanto um menino imigrante sírio, Aylan Kurdi, de 3 anos, aparece morto na praia. Ainda há uma piada grotesca no quadrinho que, sinceramente, não merece ser contada. Apesar disso, o Charlie não faz críticas somente ao islamismo, mas também a outras religiões, como o cristianismo e o judaísmo. Entretanto, suas críticas que mais chamam atenção dizem respeito ao Islã, em função do posicionamento do jornal e de toda repercussão, ameaça e violência por parte dos sectários de tal religião.
Conclusão
Antes de qualquer coisa, o atentado tem que ser condenado. Não há como admitir, por justificativa alguma, um crime como este, já que é um crime contra a humanidade. Já vi defesas não explícitas do atentado que afirmam que a França cometeu uma série de crimes com seu colonialismo. Concordo que isso aconteceu e que colonialismo e imperialismo, francês ou não, deveriam ser punidos e pessoas, que estavam na linha de frente, deveriam ser responsabilizadas, mas um crime não corrige o outro e o atentado em Nice teve uma causa bem diferente disso. Aliás, como argumentar dessa forma diante da família de pessoas que morreram sem ter nenhuma relação com as caricaturas, inclusive a família da brasileira, devota de Iemanjá. Por essa lógica torpe, autorizaríamos a nossa própria morte, através de uma vingança histórica.
Então, este texto é uma defesa das caricaturas do Charlie Hebdo? Não, são caricaturas deploráveis e nos levam às questões da liberdade de expressão e dos limites do humor. A liberdade de expressão e o humor têm limites? Sim, há limites. E esses limites, na maioria dos países ocidentais, já estão codificados, através de leis. Não posso caluniar, ofender gravemente alguém ou a um grupo, difamar. As pessoas, e muitas vezes o Estado, não percebem que já há limites para o que podemos comunicar. As caricaturas em questão, são, legalmente, passíveis de punição, mas não através de um ato extremo e tresloucado, como um atentado. Essa punição deve vir através das leis e do Estado. Entretanto, a França está, desde o atentado contra a sede do Charlie Hebdo, vivendo um momento em que não pode recuar, uma vez que qualquer punição contra o jornal seria um enfraquecimento de um valor fundamental do estado laico, a liberdade de expressão. Como, talvez, o principal representante da laicidade do Estado, a França deve defender os pilares desse tipo de estado. Liberté, egalité, fraternité não são apenas palavras e devem, na visão francesa, ser defendidas sempre. Esse tipo de humor deve ser repensado, mas não pode ser calado através da violência, pois isso ameaçaria à própria liberdade.
Se o mundo fosse mais ético, esse tipo de humor não existiria, mas, caso surgisse, não seria parado pela violência, mas por leis do próprio Estado, como ocorre com a apologia ao nazismo.
Como já foi dito, não há como, por nenhuma razão, defender o atentado. Entretanto, dois princípios devem guiar a França: a laicidade do Estado e a igualdade das religiões. Com isso em mente, e afastando toda islamofobia que poderá surgir, a França e o mundo devem procurar uma resposta a esses acontecimentos. Todos sabemos que não é fácil, uma vez que a questão envolve o relativismo cultural, sempre importante, e questões históricas e sociológicas ainda não respondidas. Todavia, a busca por uma resposta é urgente e precisa ser justa.
Alexandre L Silva
NOTAS
Também: https://tvi24.iol.pt/internacional/franca/autor-de-atentado-em-nice-identificado-pela-policia