Irmã Dulce por um ateu
Não pretendo, neste artigo, discutir questões teológicas referentes à Irmã Dulce, visto que, pelo meu ateísmo, não sou o mais indicado para tal. Entretanto, as questões humanas também falam alto em sua vida. Irmã Dulce é uma figura reconhecida pelo amor, principalmente aos mais pobres e necessitados, o que a faz um exemplo para tempos tão difíceis e a coloca na contramão daquilo pregado pelos governos de extrema-direita que assolam o Brasil.
Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes é (não considero maternidade e paternidade sendo usadas com o verbo no passado) filha de Dulce Maria de Souza Brito e de Augusto Lopes Pontes (Dentista e Professor da Universidade Federal da Bahia. A chamada a auxiliar os mais pobres nasceu antes mesmo de entrar para a Igreja, pois desde criança já a exercitava, sendo esse a principal razão para entrar na vida religiosa. Recusada, por ser nova demais, no Convento de Santa Clara do Desterro, volta a procurar, posteriormente, uma instituição católica e é aceita na Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, na cidade de São Cristóvão, Sergipe. Após seis meses na Congregação, com 19 anos (em 1933), faz seus votos, recebe seu hábito de freira e recebe o nome de Irmã Dulce, em homenagem a sua mãe.
O Anjo Bom da Bahia, como também é chamada, tinha boa relação com os políticos e autoridades de sua época, assim como com os comerciantes e empresários da Bahia. Entretanto, suas ações nem sempre agradavam os poderosos de seu tempo.
Para fazer um dos maiores complexos de saúde do país, o Hospital Santo Antônio em Salvador (BA), ela invadiu e começou a construir no local do galinheiro de seu convento e as galinhas, por sua vez, foram transformadas em canja para os pobres. Todavia, oito anos antes disso acontecer. Irmã Dulce invadiu cinco casas na Ilha dos Ratos (Cidade Baixa) em 1939, para abrigar os doentes que recolhia nas ruas. Ficou lá até ser expulsa pelas autoridades, levando os doentes para os arcos da Igreja do Bonfim e, depois, para o próprio convento, conforme dito acima.
Antes das invasões das casas, em 1936, Irmã Dulce, juntamente com dois operários, fundou a União Operária São Francisco. A União Operária foi fruto, por sua parte, de seu trabalho entre 1934–1935 com a catequese envolvendo trabalhadores e seu filhos, na Cidade Baixa, trabalho que inclui a criação de um posto de saúde para os operários. Em 1939, juntamente com Frei Hildebranso, Irmã Dulce funda o COB (Círculo Operário da Bahia) com o objetivo de promover a assistência social e a evangelização para milhares de pessoas. Apesar desse círculo ser proveniente do movimento circulista que condenava o comunismo, mas que defendia o direito de organização dos trabalhadores em sindicatos, isso acabou gerando um conflito de interesses entre os religiosos, já que Irmã Dulce foi pouco a pouco se interessando mais pela parte assistencial do que a sindical.
Irmã Dulce também era conhecida por proteger crianças que viviam nas ruas de Salvador, especialmente na década de 1960. Essas crianças, apesar de serem chamadas pela imprensa da época de “terrores da Cidade Baixa”, foram acolhidas pela Irmã no Centro Educacional Santo Antônio, no município de Simões Filho (BA).
De 1965 até 1975, Irmã Dulce passou por um período de exclaustração, abandono temporário da vida religiosa concedido por uma autoridade religiosa superior, pedida pelo Conselho Geral da Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus e mediada por Dom Eugênio Sales, administrador apostólico da arquidiocese. Só retornou em virtude de sua doença, dez anos depois.
Pergunto como seria considerada Irmã Dulce, hoje, diante de tudo que acontece na política e na sociedade brasileiras. Por exemplo, como seria considerada a invasão do Anjo da Bahia em tempos que pessoas como Preta Ferreira são presas por lutar por moradia e condições dignas para seus companheiros? Ou como seria julgada sua posição a favor das crianças que moram nas ruas diante de um governador como o do Rio de Janeiro e sua política de extermínio? Ou ainda, como seria encarada sua luta pelos mais pobres por um presidente que os esqueceu?
Irmã Dulce certamente não seria o tipo de religioso promovido pelo governo atual. A extrema-direita prefere promover religiosos, se podemos chamar assim, que enriquecem com o dinheiro dos mais pobres e preferem, nas suas vidas privadas, distância daqueles que os sustentam. Como já foi demonstrado por sua biografia, Irmã Dulce não foi uma religiosa de esquerda ou de direita e isso, na verdade, pouco importa para o seu caso. Entretanto, seu lado humano a distanciaria da violência e do ódio promovidos por muitos brasileiros de hoje.
Alexandre Lessa da Silva