Gilmar Mendes, Bolsonaro, Forças Armadas e a acusação de genocídio

Alexandre L Silva
4 min readJul 17, 2020

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“Pode até se dizer: a estratégia é tirar o protagonismo do governo federal, é atribuir a responsabilidade a estados e municípios. Se for essa a intenção é preciso se fazer alguma coisa. Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso” (1). Com essas palavras, Gilmar Mendes, ministro do STF, criou uma crise institucional entre o Poder Judiciário e as Forças Armadas. De tal crise, surgiram questões sobre o significado da afirmação do ministro e até que ponto isso pode ser verdadeiro.

É preciso dizer que a partícula ‘se’, presente na fala do ministro, diz respeito a estratégia do governo de jogar a responsabilidade para os estados e municípios, e não à questão do genocídio, como pretendem certos analistas políticos. Outro ponto importante é saber se houve uma hipérbole, figura de linguagem marcada pelo exagero. Não há provas disso. O máximo que pode ser dito é que Gilmar Mendes fez um uso comum da palavra, e não técnico. As Forças Armadas, entretanto, fizeram a leitura mais dura das palavras de Mendes, então, em função disso, será feita uma análise dessa versão mais dura e, com isso, saber se ela corresponde à verdade.

A primeira coisa que deve ser descoberta é se há uma íntima relação entre as Forças Armadas e o governo Bolsonaro. Per se notae que não há como negar a existência de tal relação. O governo Bolsonaro sequer existiria se não fosse a presença dos militares, aliás o próprio Bolsonaro admitiu que o general Villas Boas foi um dos principais responsáveis pela sua eleição (2). Poder-se-ia ir, até, mais longe, dizendo que Bolsonaro é parte de um projeto encabeçado pelas Forças Armadas e Estados Unidos, tomando como base seus discurso e conduta. Além do mais, a participação de militares no governo é algo impressionante, tendo o Brasil mais militares como ministros que a Venezuela, um país em constante ameaça de golpe (3).

Já é evidente, como foi demonstrado, que o governo Bolsonaro (ou desgoverno) é um regime militarizado. Agora, resta saber se estamos diante de um genocídio, segundo o entendimento jurídico. Para tal, serão apresentadas as visões jurídicas desse crime.

Pelo Estatuto de Roma, genocídio é definido por qualquer um dos seguintes atos, desde que “praticados com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal:

a) Homicídio de membros do grupo;

b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo;

c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial;

d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo;

e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo (4).” Pensem nos pretos e pobres como formando um grupo e indígenas como formando outro, pode ser constatado qualquer um dos itens acima? Como “intenção” é algo subjetivo, deve ser perguntado se ela existe? Se não existe, a partir das palavras do ministro Gilmar Mendes, desse artigo e dos comentário de tantos analistas políticos e jornalistas, não há como não negar a intencionalidade. Ou o governo Bolsonaro suspende imediatamente sua política sanitária, de segurança pública e indígena ou não há como se defender em um tribunal internacional.

A Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (5), a Lei 2.889 de 1º de outubro de 1956 (6) e o Decreto 4.388 de 25 de setembro de 2002 (7) seguem o mesmo caminho e confirmam o Estatuto de Roma. Além desses, há o Código Penal Militar (8), em seu artigo 208, que define genocídio da seguinte maneira: “matar membros de um grupo nacional, étnico, religioso ou pertencente a determinada raça, com o fim de destruição total ou parcial desse grupo”. A pena, segundo o Código, é de reclusão de 15 a 30 anos.

Como já foi dito, não é por falta de aviso que o governo Bolsonaro pode se defender afirmando que não tinha ciência do que estava fazendo e, com isso, pretender dizer que não tinha “intenção”. A Rain Forest Rescue, por exemplo, tem uma petição para processar Bolsonaro por genocídio (9), o Coletivo de Advogacia em Direitos Humanos e a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns apresentaram uma requisição para um exame preliminar, contra Jair Bolsonaro, pela incitação ao genocídio e ataques sistemáticos generalizados contra os povos indígenas (10) que, por sinal, ganhou destaque em jornais internacionais como The Guardian (11). The New York Times noticiou outra fala de Gilmar Mendes em que acusou o governo Bolsonaro de praticar genocídio e manipulação de estatísticas nos casos de COVID-19 (12). O Democracy Now, por sua vez, traz o prefeito Arthur Virgílio Neto, de Manaus, afirmando: “Temo genocídio, e quero denunciar isso para o mundo inteiro. Temos aqui um governo que não se importa com a vida dos indígenas. … É um crime contra a humanidade que está sendo praticado aqui no meu estado, aqui na minha região” (13). São tantos os exemplos que não há meio de alguém dizer que o governo não sabia ou não pretendia. Resta saber, apenas, como será o futuro de todas as pessoas envolvidas nesse triste momento histórico.

Alexandre L Silva

NOTAS:

(1)https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/07/11/interna_politica,871422/gilmar-mendes-aponta-que-exercito-esta-se-associando-a-genocidio-no.shtml

(2) https://oglobo.globo.com/brasil/o-senhor-um-dos-responsaveis-por-eu-estar-aqui-diz-bolsonaro-comandante-do-exercito-23341238 Veja também: http://www.esquerdadiario.com.br/Bolsonaro-admite-que-so-virou-presidente-porque-Villas-Boas-interviu-como-soldado

(3) https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51646346

(4) http://acnudh.org/pt-br/estatuto-de-roma-del-tribunal-penal-internacional/

(5) https://www.oas.org/dil/port/1948%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20a%20Preven%C3%A7%C3%A3o%20e%20Puni%C3%A7%C3%A3o%20do%20Crime%20de%20Genoc%C3%ADdio.pdf

(6) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l2889.htm

(7) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm

(8) Vide https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/1299/Genocidio-Art-208-do-Codigo-Penal-Militar#:~:text=208%20CPM-,Art.,de%20quinze%20a%20trinta%20anos.

(9) https://www.rainforest-rescue.org/petitions/1216/prosecute-brazilian-president-bolsonaro-for-genocide

(10) https://apublica.org/wp-content/uploads/2019/11/e-muito-triste-levar-um-brasileiro-para-o-tribunal-penal-internacional-diz-co-autora-da-peticao.pdf

(11) https://www.theguardian.com/world/2019/nov/27/jair-bolsonaro-international-criminal-court-indigenous-rights

(12) https://www.nytimes.com/2020/06/08/world/americas/brazil-coronavirus-statistics.html

(13) https://www.democracynow.org/2020/5/21/headlines/brazilian_mayor_fears_genocide_from_covid_19_accuses_bolsonaro_of_crime_against_humanity

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Alexandre L Silva
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Written by Alexandre L Silva

Ex-professor de diversas universidades públicas e particulares. Lecionou na UFF e na UERJ. Articulista de opartisano.org e escritor da New Order no Medium.

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