Capitalismo e a classe média: medo e competição

Alexandre L Silva
4 min readDec 30, 2020
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Muitos intelectuais, das mais diversas áreas, já abordaram a atual tendência da classe média em buscar na extrema direita a solução de seus anseios. Como é sabido, a classe média brasileira não titubeou em votar na direita mais extrema na última eleição presidencial, colocando nela todas as suas fichas contra a possibilidade de uma volta do Partido dos Trabalhadores ao poder. Mas, por que tanto ódio ao PT e à esquerda em geral? O que a classe média tanto teme, afinal?

A classe média é, sem dúvidas, conservadora, interpreta qualquer crise como ameaça, em termos de desordem e perigo, ama a repressão e flerta, pelo menos atualmente, com o protofascismo e o autoritarismo, como afirma Marilena Chauí (1), sendo uma espécie de classe sem referência que faz as vezes de capataz da classe dominante. Também é, a classe média, fruto do racismo estrutural que nasce com a escravidão e de discursos fundadores de uma brasilidade racista, como o de Gilberto Freyre e, principalmente, de Sérgio Buarque de Holanda, segundo Jessé Souza (2). Lutando por manter seus privilégios e apoiada em seus preconceitos, conforme aponta Souza, a classe média busca por um motivo para atacar e derrubar a esquerda, e o encontra na pauta da corrupção. Entretanto, qualquer um que tenha uma boa compreensão de nosso mundo consegue ver que a questão da corrupção estatal é secundária em relação, por exemplo, à desigualdade. Mesmo assim, a classe média acaba por se tornar o motor, acelerado pela elite, para o golpe contra a esquerda.

Findo o golpe e eleita a extrema direita, denúncias de corrupção começam a pulular contra ela, com a existência de provas muito mais robustas que aquelas apresentadas — ou não — contra políticos de esquerda. Ainda assim, a classe média nada faz, jogando por terra o argumento da corrupção. É preciso, portanto, descobrir o sentimento motriz da classe média e, para isso, é necessário buscar no interior do próprio capitalismo.

Para Weber, o capitalismo pode ser caracterizado “pela competição e troca, orientação aos preços de mercado, a aplicação de capital e a busca de lucro” (3). Aqui, percebe-se que Max Weber, assim como Marx (4) e muitos outros autores, apontam a competição como uma das características fundamentais do capitalismo. Portanto, o capitalismo precisa da competição para fazer girar a roda da economia, e é justamente esse o ponto em questão.

A classe média tem, sem nenhuma dúvida, medo de perder seus privilégios, principalmente no que diz respeito a seu capital cultural (5). Entretanto, é o medo da competição que tanto apavora essa classe.

Com o acesso de membros das classes inferiores a bens culturais (livros, viagens, instrumentos musicais, ensino universitário etc.) e com o avanço do capital cultural, cada vez mais possuído por pessoas de classes mais baixas, a classe média se apavora e começa a pensar na possibilidade de competir com os mais pobres. Afirmações, feitas por membros da classe média como: “é hora de escolher entre meu filho e um pobre” ou “o aeroporto está parecendo a rodoviária” só corroboram com essa tese. A classe média não quer só não ter que se misturar, ela também não quer competir.

Uma classe média menor, com seus privilégios garantidos e com o quase monopólio do capital cultural assegura a seus membros um afastamento da competição, pois, mesmo que a competição ocorra, há lugar para todos que pertencem a essa classe, não havendo necessidade de grandes preocupações.

É o horror à competição aquilo que torna a classe média tão horrorizada com questões como a desigualdade e as soluções que são dadas a ela. Só que o horror à competição também é horror ao capitalismo, tão idolatrado por essa classe, já que essa é um de suas características definidoras. A contradição que nasce dessa classe é um ponto importante a ser explorado e trabalhado por intelectuais e políticos de esquerda.

Observando a classe média, então, poder-se-á ver que é a parte da sociedade em que a competição menos ocorre: o pobre tem que lutar para sobreviver, os ricos, desejosos de ter cada vez mais, competem entre eles e a classe média, por sua vez, quer reproduzir o mesmo status, grosso modo, dos seus pais, seja lá no Brasil ou em qualquer país capitalista.

Alexandre Lessa da Silva

NOTAS

(1) Marilena Chaui: violência e autoritarismo por todos os lados (uol.com.br)

Também: Marilena Chauí: o impeachment e o ódio de classe — Outras Palavras

e IPCPovertyInFocus26.pdf (ipcig.org)

(2) SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017. Não é só a esses dois intelectuais que Souza toma como responsáveis pela criação desse mito, Nomes como Fernando Henrique Cardoso, Raymundo Faoro e Roberto DaMatta também ajudaram a fortalecer esse tipo de explicação de Brasil, embora com menos importância.

(3) KOCKA, Jürgen. Capitalism: a short history. Trad. de Jeremiah Riemer. Nova Jersey: Princeton University Press, 2016. P. 11.

(4) Ibid. P. 7 e ss.

(5) Para o conceito de “capital cultural” e demais capitais: Bourdieu, Pierre. The forms of capital. In: RICHARDSON, John. Handbook of Theory and Research for the Sociology of Education. Westport: Greenwood Press, 1986. P.241–258.

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Alexandre L Silva

Ex-professor de diversas universidades públicas e particulares. Lecionou na UFF e na UERJ. Articulista de opartisano.org e escritor da New Order no Medium.