Bolsonaro e o genocídio dos Yanomamis: uma visão legal

Alexandre L Silva
4 min readJan 23, 2023

O termo “genocídio” foi criado pelo jurista Raphael Lemkin (1900–1959) em sua obra Axis Rule in Occupied Europe (Domínio do Eixo na Europa Ocupada) de 1944 com o objetivo caracterizar um crime, já presente em outras épocas, mas que pautava a Europa durante a Segunda Guerra. Ao reunir a palavra grega “genos” (γένος, raça, povo, grupo com uma mesma ascendência) à latina “cidium” (matar), Lemkin pretendeu elaborar um novo conceito que fosse capaz de ajudar a renovação do direito internacionalde sua época.

No capítulo 11 do livro supracitado, o autor afirma que:

em geral, o genocídio não significa necessariamente a destruição imediata de uma nação, exceto quando é perpetrado por meio do assassinato em massa de todos os membros de uma nação. É antes um plano coordenado de diferentes ações destinadas a destruir os fundamentos essenciais da vida dos grupos nacionais, com o objetivo de aniquilar os próprios grupos.

Assim, é evidente que, para Lemkin, não é preciso a destruição de todo um grupo para que haja genocídio, basta a tentativa articulada para destruir a base desse grupo.

Em 1948, a ONU criou uma convenção para tratar o tema, a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Nela, os países membros se comprometeram a investigar e punir esse tipo de crime e, assim, o crime de genocídio começou a fazer parte dos ordenamentos jurídicos pelo mundo.

No Brasil, o ordenamento jurídico passa a tratar especificamente do genocídio apenas em 1956 com a Lei 2889 (1º de outubro de 1956). Nela, o artigo II da convenção anteriormente citada é reproduzido na íntegra e a mesma condição é colocada: “… a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Assim, percebe-se que não é necessário destruir, acabar com todo um grupo para que o genocídio exista.

Em 21 de dezembro de 1989, o presidente José Sarney promulga a Lei 7.960 que afirma que caberá a prisão temporária para os casos de genocídio e uma série de outros crimes.

O Código Penal Militar é mais um exemplo onde o crime de genocídio está presente , com pena de reclusão de quinze a trinta anos, definido em seu artigo 208: “matar membros de um grupo nacional, étnico, religioso ou pertencente a determinada raça, com o fim de destruição total ou parcial desse grupo”.

A Lei 8072 de 1990 classifica o crime de genocídio, acompanhado de outros, como crime hediondo. Essa lei é alterada em 2019, com a Lei 13.964, com o objetivo de aperfeiçoar e a legislação penal e processual penal no que diz respeito ao genocídio e demais crimes.

No tocante ao direito internacional, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, em seu artigo 6º, entende como genocídio:

qualquer um dos atos mencionados a seguir, praticados com a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo nacional, étnico, racial ou religioso como tal:

Matar membros do grupo;

Causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

Submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física, total ou parcial;

Adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;

Efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.

O Decreto 4.388 de 25 de setembro de 2002 promulgou o Estatuto de Roma que, anteriormente, já havia sido ratificado pelo Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo 112 de 6 de junho de 2002.

Ao final da CPI da Covid, Renan Calheiros foi persuadido de retirar do relatório final as imputações por genocídio de indígenas. Assim como no caso da população em geral, alguns defendiam que o crime de genocídio não estava bem tipificado e que as evidências não eram tão fortes. Agora, com a descoberta, pelo governo Lula, da situação deplorável e mortal em que vivem os yanomamis, o ministro da Justiça e Segurança Públilca, Flávio Dino, já afirma que “há fortes indícios de genocídio” e, por isso, determinou abertura de inquérito para apurar o caso.

Não há nenhuma dúvida que os indícios de genocídio são fortes e que, pelas legislações nacional e internacional o crime de genocídio pode ser caracterizado, caso seja comprovada a intencionalidade de Bolsonaro e seu governo, o que não deve ser difícil depois do governo Bolsonaro ignorar 21 pedidos de socorro feitos ao Governo Federal, Ministério Público Federal, Funai e Exército.

Com o pedido de Dino, no entanto, as coisas poderão mudar de figura. O Tribunal Penal Internacional (TPI) somente entra em cena quando o país e seu Poder Judiciário decidem não investigar nem punir os responsáveis pelo genocídio. Assim, se as autoridades do país começam a investigar no sentido de punir, caso haja responsabilidade, aqueles que são responsáveis por um genocídio, a competência é da justiça nacional, com a legislação do TPI complementando a legislação nacional.

Seja como for, não há dúvidas que os fatos recentes sobre os Yanomamis parecem representar fortes indícios para tipificar as ações do chefe do Executivo passado como genocidas.

Alexandre Lessa da Silva

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Alexandre L Silva

Ex-professor de diversas universidades públicas e particulares. Lecionou na UFF e na UERJ. Articulista de opartisano.org e escritor da New Order no Medium.