A Lei da Anistia, Bolsonaro e o perigo de uma nova ditadura

Alexandre L Silva
6 min readMay 4, 2020
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Qual a razão da chegada ao poder da extrema-direita, de Bolsonaro e dos militares no Brasil? Muitos políticos, historiadores, comentaristas e jornalistas apontam o impeachment de Dilma Rousseff, ocorrido no período entre 2 de dezembro de 2015 e 31 de agosto de 2016, como o evento que possibilitou o crescimento das forças de extrema-direita no país (1). Evidentemente, esse impedimento não teve o devido amparo legal, uma vez que não houve crime doloso ou de responsabilidade, a acusação não diz respeito ao mandato em curso naquele momento, mas ao anterior, muito menos improbidade administrativa (2), o que torna o impeachment de Dilma um golpe político (3).

Apesar de reconhecer a importância do golpe contra Dilma para o fortalecimento da extrema-direita, vou mais longe e afirmo que a origem desse fortalecimento está na relação que todos os governos pós-ditadura tiveram com a chamada Lei da Anistia, assim como as demais instituições democráticas do país.

A Lei da Anistia (LEI No 6.683, DE 28 DE AGOSTO DE 1979) foi promulgada no início do governo do general Figueiredo (1979–1985) e traz, em seu primeiro parágrafo, o seguinte texto:

É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado) (4).

Percebam que a anistia, com seu mote “anistia ampla, geral e irrestrita”, foi pedida por muitos no período, mas visando, em sua maioria, aqueles que lutaram contra a ditadura e não os membros dessa ditadura. Ao anistiar os dois lados, a ditadura militar promoveu uma autoanistia, o que é um absurdo. Não é lógico, muito menos jurídico, alguém anistiar a si mesmo. Hitler, por exemplo, não teria o que temer após o fim da Segunda Guerra Mundial, uma vez que poderia aplicar a anistia a todos os nazistas, incluindo a ele mesmo, e, portanto, não ser punido de nenhuma forma.

A Lei da Anistia também fere uma série de princípios e direitos constitucionais ao deixar sem punição crimes que violam tais princípios e direitos. Logo no primeiro artigo da Constituição Federal, a dignidade da pessoa humana é elencada como um dos fundamentos do Estado, assim como a cidadania e a pluralidade política, valores, todos eles, altamente desrespeitados durante a ditadura. No artigo quinto, por sua vez, são garantidas “a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, direitos que foram severamente violados durante o regime militar da época. E o que falar então do inciso 3 desse mesmo artigo? Nele, é afirmado que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”(5), uma condenação explícita das práticas do período ditatorial.

Em outubro de 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) conseguiu que a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 (ADPF 153) fosse ajuizada no STF (Supremo Tribunal Federal). A ADPF em questão contestava a constitucionalidade da Lei da Anistia, assim como a contradição dessa lei com o direito penal internacional, hierarquicamente superior ao direito penal interno (6). Entretanto, no mês de abril de 2010, o STF julga improcedente a ADPF “nos termos do voto do Relator, o Ministro Eros Grau. Em número de sete votos contra dois, prevaleceu o entendimento segundo o qual a Lei de Anistia seria válida, por apresentar-se como instrumento de transição do regime ditatorial para o democrático” (7).

A Lei da Anistia, apesar da decisão do STF, viola todas as convenções de direitos humanos que o Brasil é signatário. O Pacto de San José da Costa Rica, por exemplo, afirma que os Estados Americanos signatários devem garantir um conjunto de direitos, entre eles o direito à vida, ao reconhecimento da personalidade jurídica de cada pessoa, à integridade pessoal, à liberdade pessoal, à liberdade de pensamento e expressão, à reunião e associação, entre outros. Também assevera que toda pessoa deve ter resguardados seus direitos políticos e garantias judiciais (8). A Lei da Anistia, per se notae, viola esse pacto, assim como todas as outras convenções sobre direitos humanos. Em função disso, o Estado brasileiro já soma duas condenações na Corte Interamericana de Direitos Humanos. A primeira ocorreu em dezembro de 2010, no caso Gomes Lund y Outros vs. Brasil, no tocante à Guerrilha do Araguaia, a segunda, em julho de 2018, pelo caso Vladimir Herzog. Ambas fazem referência à Lei da Anistia.

A decisão, citada aqui, pelo STF sobre a Lei da Anistia impediu qualquer punição àqueles que violaram os direitos humanos no período da Ditadura Militar brasileira. O máximo que o Poder Judiciário brasileiro chegou a fazer foi reconhecer um militar, Brilhante Ustra, formalmente como torturador (9). Destarte, não houve realmente punição pelos crimes cometidos por militares durante os “anos de chumbo”. Diferente do que ocorreu em todos os outros países da América Latina que tiveram ditaduras semelhantes, o Brasil foi o único país que não julgou ou, pelo menos, tentou julgar seus opressores (10). Países como Paraguai, Argentina, Chile e Bolívia foram mais corajosos e agiram de forma mais justa que nós e hoje têm uma relação de repúdio a toda forma de ditadura militar.

A inexistência de punições pelos crimes cometidos pelos militares durante a ditadura possibilitou, no Brasil, um ar de impunidade que começou a ameaçar a democracia. A impunidade também levou a uma ideia torta de que não fizeram nada de errado e, se não agiram errado, então, segundo essa lógica distorcida, fizeram o que é certo. Sendo assim, a Ditadura Militar seria um período a ser louvado, segundo os seus defensores. Nasce, dentro desse pensamento, a narrativa construída de maneira mítica, muito semelhante à descrição daquilo que Mircea Eliade chamou “nostalgia das origens” (11). Assim, a narrativa de um período militar que só castigava aqueles que agiam errado, sem corrupção e seguro para as “pessoas de bem” começou a se estruturar dentro desse círculo social. Porém, era preciso uma figura folclórica para que o mito utilizasse a faceta demoníaca da experiência do mal, articulando-a em uma linguagem (12). Essa figura é Bolsonaro e a linguagem é aquela do dogma, onde não há espaço para a argumentação e fatos que provem o contrário dessa narrativa mítica.

Não há dúvidas sobre a importância do coup d’état sofrido por Dilma, muito menos do papel capital dos Estados Unidos, de Trump e de teóricos norte-americanos, como Steve Bannon, em todo esse processo que levou uma figura nefasta como Bolsonaro ao poder. Entretanto, se o Estado brasileiro tivesse agido como os seus iguais latino-americanos, teríamos afastado para bem longe o perigo de mais uma ditadura militar.

Alexandre L Silva

NOTAS:

(1) Um exemplo desse posicionamento é encontrado, por exemplo, em : https://www.thecanary.co/global/world-analysis/2019/06/12/massive-leak-exposes-the-soft-coup-that-gave-rise-to-brazils-far-right/

(2) Sobre o assunto, remeto ao parecer de Dalmo de Abreu Dallari contra o impeachment de Dilma (https://web.archive.org/web/20151222133539/http://jota.info/parecer-de-dalmo-de-abreu-dallari-contra-o-impeachment-de-dilma), assim como o de Celso Antônio Bandeira de Mello e Fábio Konder Comparato (https://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/10/art20151014-13.pdf).

(3) Conforme afirmado por Noam Chomsky que chama o golpe sofrido por Dilma de “soft coup”: https://theintercept.com/2018/10/02/lula-brazil-election-noam-chomsky/

(4) A parte vetada diz respeito à expressão a expressão “e outros diplomas legais” que foi retirada do texto. A lei completa e revisada é encontrada em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6683.htm

(5) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm

(6) https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/150356/adpf-153-questiona-constitucionalidade-da-lei-de-anistia-para-crimes-cometidos-no-periodo-da-ditadura-militar

(7) https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2177-70552012000100007

(8) http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm

(9) https://www.gazetadopovo.com.br/justica/tribunal-extingue-acao-em-que-ustra-e-condenado-por-tortura-8pp9zcglet1q60yrow06sty46/

(10) https://oglobo.globo.com/mundo/os-processos-de-direitos-humanos-nos-paises-da-america-latina-3080711

(11) ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano.Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. P. 48 e ss. Mircea Eliade afirma que essa nostalgia diz respeito a um tempo primordial, uma situação originária com a presença de deuses e seres divinos; é uma nostalgia religiosa que busca por um passado mítico, a busca pela perfeição dos primórdios.

(12)RICOEUR, Paul. El mal: un desafío a la filosofía y a la teología. Buenos Aires: Amorrortu, 207. P.31.

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Alexandre L Silva

Ex-professor de diversas universidades públicas e particulares. Lecionou na UFF e na UERJ. Articulista de opartisano.org e escritor da New Order no Medium.