A ideologia do filme Parasita

Alexandre L Silva
7 min readFeb 17, 2020

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Aviso: o texto traz um resumo de todo filme.

O Oscar 2020 foi marcado pela vitória inédita de um filme não falado em língua inglesa: Parasita (Gisaengchung). Alpinismo social, arrivismo, luta de classes, assimetria são apenas algumas palavras e expressões que foram usadas pelos críticos para classificar essa obra que, no entanto, não se encaixa exatamente em nenhuma dessas descrições. Em virtude disso, farei uma análise ideológica do filme. Apesar do conceito de “ideologia” ser tão maltratado e usado de maneira errônea pelo apedeuto que ocupa a presidência da República e seus asseclas, esse conceito é de vital importância para interpretamos o mundo capitalista no qual o filme está inserido, assim como todos nós.

O filme é centrado na vida de uma família de classe baixa da Coreia do Sul que tem muitas dificuldades na sua sobrevivência. O filme começa por uma busca desesperada por qualquer sinal de wifi , já que a família já não mais consegue pagar para ter internet em seu minúsculo apartamento no subsolo. Essa busca mobiliza toda a família, demonstrando o valor que o sinal de internet tem nos dias atuais, já que sem ele, não chega informação, comunicação e até as oportunidades de emprego desaparecem sem o uso da internet. Em outras palavras, a falta de sinal de internet implica a invisibilidade social e, portanto, deve ser evitada a todo custo. A dificuldade alimentar, insetos e a cadeia de exploração capitalista, representada, no começo do filme, por uma empresa de entrega de pizzas, são alguns dos percalços que os membros da família enfrentam.

A solução para melhorar a situação em que vivem, pelo menos aparentemente, surge com um convite de um amigo do filho da família para ser professor de Inglês de sua namorada. A garota é de uma família muito rica e exigente, o que faz com que o futuro professor peça a sua irmã para que falsifique uma série de certificados e diplomas que demonstrem seu grau de ensino, já que finge ser universitário, e sua qualificação. Roubo de sinal de wifi, mentir, falsidade ideológica, falsificação de documentos, os delitos seguem aumentando, numa crescente que deseja demonstrar que a família é capaz de tudo para atingir seus objetivos.

A família rica começa a ser introduzida quando o jovem apresenta suas credenciais para ser professor de Inglês. Curiosamente, a família rica (Park) é composta de quatro membros, assim como a família pobre (Kim), sendo o jovem Ki-woo (filho da família Kim) contratado para ser o responsável pelo ensino de Inglês da filha adolescente da família Park. Mas ele não é o único a ser contratado. Ki-woo descobre que o irmão de sua pupila é uma criança talentoso e que tem algum problema psicológico, o que o faz apresentar sua irmã, escondendo o parentesco, como uma especialista em artes e psicologia. Em função disso, ela também é contratada e consegue, através de subterfúgios, forçar a demissão do motorista dos Park e, consequentemente, a contratação do pai da família Kim, Ki- taek, como novo motorista da família. Finalmente, conseguem a demissão da governanta da família e, assim, Chung-sook, mãe da família Kim, é contratada também.

Pronto, temos duas famílias em uma mesma casa. A família Park é a dona da fantástica casa e a Kim é a vassalagem dessa família. Tudo parece rumar para uma luta de classes, utilizando armas não convencionais, entre os dois opostos da sociedade, mas não é o que acontece. O surgimento de uma terceira família vem à tona. Ela surge quando a família Park está fora e os Kim resolvem aproveitar a casa como se fossem os donos, numa noite chuvosa. A antiga governanta, com a desculpa que esqueceu algo, volta nessa noite e é descoberto que ela esconde o marido, em função de dívidas que ele acumula, no subterrâneo da casa, uma espécie de porão ou abrigo nuclear. A guerra entre ambas as famílias começa quando a família Kim não aceita a proposta de continuar escondendo o marido da antiga governanta na casa. Há uma briga, tentativas de assassinato e a família Kim consegue manter seus adversários, muito machucados, no porão, ao mesmo tempo que a família rica volta antecipadamente para casa.

Após toda essa confusão, a família Kim volta para sua casa, onde encontra o resultado da chuva: seu apartamento está inundado, suas coisas estão perdidas e lutam para salvar o pouco que restou, como as medalhas esportivas da mãe. Após toda essa catástrofe, são comunicados que os Park darão uma festa de aniversário no dia seguinte. Com todos presentes nessa festa, o jovem Ki-woo volta ao porão e, ao se encaminhar na direção do sangue da antiga governanta já morta, é atacado pelo marido ainda vivo e acertado com uma pedra de bonsai dada de presente por seu amigo, o mesmo que lhe arranjou o emprego, o que o deixa quase morto. O marido da governanta, então, sai da casa, vai para o quintal e consegue ferir mortalmente Ki-jung, filha dos Kim. Após uma luta com a mãe de Ki-jung, ele é acertado com um espeto de churrasco por ela e a ainda há tempo de cumprimentar o patriarca da família Park que rola seu corpo para pegar as chaves do carro para levar seu filho caçula que desmaiou ao ver o assassino de sua professora (Ki-jung). Ao rolar o corpo, o pai dos Park tampa seu nariz, fazendo o patriarca dos Kim relembrar dos momentos em que o escutou reclamar de seu cheiro, o qual o filho caçula dos Park identificou em toda família Kim, mesmo sem saber, dizendo que todos têm o mesmo cheiro. Tais lembranças acabaram por fazer que o senhor Kim esfaqueasse o senhor Park e o matasse.

O filme termina com a filha dos Kim morta, o filho com problemas neurológicos em função do sofrimento sofrido, a mãe em liberdade condicional e o pai escondido no porão da casa que outrora era dos Park. Através do Código Morse utilizado através da iluminação da casa, que já era utilizado pelo marido da antiga governanta, o filho consegue notícias do pai e promete para ele mesmo tramar um plano, uma ideia presente em todo filme, que conseguisse fazer o pai sair do porão. Esse plano nada mais é do que ficar rico e comprar a antiga casa dos Park.

O diretor Bong Joon-ho classifica o filme como imprevisível, dizendo que nunca se sabe o que vai acontecer a seguir. Penso o contrário, o filme tem uma narrativa bem linear. Analisando a questão da violação da moral e da lei, o filme apresenta uma crescente dessas violações: mentir, falsificar documentos, injúrias, lesões corporais, assassinato. A cada quadro mais um ato ilícito é esperado por parte da família Kim. Talvez a grande atração do filme seja o fato do público se perguntar até onde essa família, aparentemente normal, vai, uma vez que demonstra, logo de início, estar disposta a tudo para conseguir atingir seus objetivos.

Outro ponto importante no filme é a questão da definição do conceito de mérito. Aristóteles, em sua Política, já observava que a palavra mérito é polissêmica, uma vez que depende da forma de governo. Atualizando Aristóteles, pode ser afirmado que o mérito, no caso, depende do modelo econômico e político, isto é, do capitalismo e do liberalismo. Os Kim tem todas as capacidades e virtudes para ocupar os cargos que ocupam; são pessoas excepcionais. Entretanto, falta a toda a família a documentação, os certificados, a certificação oficial dentro do modelo econômico e político em que vivemos. Tal certificação, como é demonstrado logo no início do filme, quando o filho da família diz a seu amigo que a irmão não foi para faculdade em função da falta de dinheiro da família. Dessa forma, há uma segregação econômica que separa aqueles que tem competência e dinheiro daqueles que não tem dinheiro ou poder econômico, mas apenas competência. Isso nos leva a pensar o quão desleal é a concorrência dentro do sistema capitalista. Os despossuídos não têm como pagar pelo ensino, se conseguem aprender, não têm certificação e, caso consigam essa certificação, não tem uma rede social (amigos, família, conhecidos) que os ajudem a se lançar no mercado.

O conflito, conceito muito comum no mundo cinematográfico, também aparece no filme. O grande conflito ocorre não entre as famílias Kim e Park, mas entre a família Kim e aquela da antiga governanta. Um conflito, portanto, que acontece no seio da pobreza. Os pobres lutam para não ter seus disfarces arrancados diante da família rica que, por sinal, permanece estática durante todo o filme. O movimento é sempre feito pelo lado pobre da estória, um movimento sempre no sentido do pior. O movimento, a corrupção, o estado de decadência sempre se faz presente entre os despossuídos, contrastando com a beleza estática da riqueza.

Durante a luta final entre o marido da antiga governanta e os Kim, ao ver sua filha ferida mortalmente e o pai da família Park tapar o nariz para não sentir o “cheiro de pobre” proveniente do corpo do marido da governanta, o pai da família pobre parece trazer à mente tudo aquilo que escutou dele: seu cheiro peculiar e as vezes que quase ultrapassou o limite estabelecido pelo senhor Park com suas perguntas. Enfurecido, ataca o pai da família Park com uma faca e o mata. Ao fazê-lo, corre para o porão da casa e lá se esconde, sabendo que aquela é a parte que lhe cabe nesse latifúndio.

O final do filme demonstra o caminho que a família Kim deve tomar. Ao perguntar à filha dos Park, Da-hie, se é digno de estar entre pessoas tão bonitas, Ki-woo demonstra sua preocupação de ser inferior e não merecer estar entre os mais ricos. Também em uma mensagem para o pai diz ter um novo plano, uma estratégia para libertar o pai do porão. Entretanto, dessa vez “o plano” é trabalhar e procurar ficar rico para comprar a casa e, então, libertar o pai. Dessa forma, o filme termina por apontar o caminho das regras, tão estáticas quanto a família Park, apontadas pelo sistema capitalista e pelo liberalismo, como aquelas ditadas por John Locke sobre a origem da propriedade privada. Quando essas regras são contestadas, como aconteceu com a família Kim, os resultados são trágicos, demonstrando um determinismo digno de uma tragédia grega.

Alexandre L Silva

(Texto sem revisão)

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Alexandre L Silva
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Written by Alexandre L Silva

Ex-professor de diversas universidades públicas e particulares. Lecionou na UFF e na UERJ. Articulista de opartisano.org e escritor da New Order no Medium.

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