A falsa escolha entre a vida e a economia

Alexandre L Silva
4 min readJun 15, 2020
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A pandemia de COVID-19 acabou por levantar uma série de questões envolvendo aquilo que, em filosofia, é chamado de teoria dos valores ou axiologia. Entre essas questões, a que mais vem chamando atenção é aquela que apresenta a oposição entre a vida, encarada como um direito natural desde Locke (1), na Idade Moderna, e a economia (valor econômico). Entretanto, o que será mostrado por esse artigo é que tal oposição é uma falácia.

John Locke, em seu ‘Segundo tratado de governo’ (2), defende, entre outras teses, a existência de direitos provenientes da própria natureza humana, os direitos naturais, afirmados por uma lei natural que os protege. Essa lei e esses direitos servirão de base para sua teoria contratualista do estado.

Vida, liberdade, propriedade e revolução (direito à resistência a um governo que agrida os demais direitos apontados) são os principais direitos descritos por Locke. O direito à propriedade é considerado, por ele, como o mais importante, uma vez que os demais direitos podem ser reduzidos ao direito à propriedade (3). Dessa forma, a vida, para aquele que é considerado o pai do liberalismo, é um direito natural de todo o ser humano. Eis um ponto que pode ter causado muita confusão ao longo da história.

De certa forma, essa visão liberal enquadrou a vida dentro do conceito de propriedade, o que é um erro, talvez até proposital. Se for examinado o conceito lockiano, tudo leva no sentido da valorização da propriedade, existente desde o estado de natureza e que tem sua origem no trabalho, o que é extremamente positivo para o capitalismo do ponto de vista ideológico (4). Em seu ‘Segundo tratado’, o estado pode punir alguém com a privação da liberdade ou, até, com a pena capital (morte), mas, em suas palavras, “o poder supremo não pode tirar de nenhum homem qualquer parte de sua propriedade sem seu próprio consentimento” (5). Isso demonstra que, apesar da existência de dois significados para o direito à propriedade (soma dos direitos naturais e propriedade material), o liberalismo, desde seu início, sempre valorizou aquilo que pode ser traduzido como ‘capital’.

Para contrapor essa visão, utilizar-se-á, como ferramenta teórica, um conceito de um filósofo também de grande importância para o pensamento liberal, Immanuel Kant.

Kant, em sua ‘Crítica da razão pura’, considera o espaço e o tempo como condição de possibilidade de toda experiência possível, isto é, espaço e tempo fazem parte do nosso aparelho cognitivo e, por isso, tornam possível nosso conhecimento do mundo. Portanto, pode ser afirmado que são condições para todo o conhecimento (6).

Fazendo uma transposição da teoria do conhecimento para a teoria dos valores, a vida deve ser considerada como condição de possibilidade para todos os valores, uma vez que só há valor se existir vida. Portanto, não há como haver uma contradição entre a vida e qualquer valor, uma vez que o valor só se torna possível através da vida e, assim, retirar a vida de alguém é retirar a possibilidade de todos os valores. Tendo isso afirmado, não há espaço para deixar de fora do alcance do estado a propriedade de um indivíduo, mas a vida, como condição primordial, jamais deverá ser tocada pelo estado através da pena capital.

É certo que a vida pode perder o sentido quando certos valores desaparecem e que, por isso, um indivíduo pode morrer defendendo tais valores. Todavia, essa é uma decisão do indivíduo, não do estado. O estado não pode fazer tal escolha. Aliás, duvido que alguém, em seu juízo pleno, escolheria manter seu capital ou seu trabalho e perder sua vida, uma vez que intuitivamente tal sujeito sabe que é preciso estar vivo para trabalhar ou usufruir daquilo que tem.

Desfeita a confusão histórica criada pelo capitalismo e seu braço político, o liberalismo, demonstra-se que não se sustenta, para o ‘povo’ ou indivíduo, a ideia que há uma oposição entre economia e saúde (vida) e que “o povo deve escolher”. Aliás, só é possível uma escolha a partir do fato de se estar vivo.

Alexandre L Silva

NOTAS

(1) LOCKE, John. Second treatise of government. Indianapolis, Hackett Publishing Company, 1980.

(2) Ibid.

(3) A vida é sua, a liberdade também, logo, você a possui. Essa é a visão de John Locke.

(4) Pode ser pensado que quem é rico o é em virtude de seu trabalho ou de sua família, já quem é pobre…

(5) LOCKE, John. Op.cit. p. 73, §138.

(6) KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos, Alexandre Fradique Morujão. 5.ed. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. B39 “… o espaço é condição de possibilidade dos fenômenos, …. é uma representação a priori que fundamenta necessariamente todos os fenômenos externos.” Também : B54: “O tempo é, sem dúvida, algo real, a saber, a forma real da intuição interna; tem pois realidade subjetiva, relativamente à experiência”.

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Alexandre L Silva

Ex-professor de diversas universidades públicas e particulares. Lecionou na UFF e na UERJ. Articulista de opartisano.org e escritor da New Order no Medium.